Política
Debatedores refutam tese do “poder moderador” das forças armadas em seminário na CCJ
Debatedores rechaçaram com veemência nesta quarta-feira (16), em seminário promovido pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados, a interpretação do texto constitucional que enxerga as Forças Armadas como uma espécie de “poder moderador”, capaz de intervir em conflitos entre os poderes constituídos: Executivo, Legislativo e Judiciário.
O seminário “Forças Armadas e a política: limites constitucionais” foi proposto pelo presidente do colegiado, deputado Rui Falcão (PT-SP), em comum acordo com os coordenadores de bancada na CCJ.
A justificativa apresentada por Falcão sustenta que, nos dois últimos anos, surgiram interpretações do artigo 142 da Constituição que colocam as Forças Armadas como uma espécie de árbitro final dos três poderes. Por outro lado, a interpretação que sempre prevaleceu é a de que cabem às Forças Armadas “a defesa da Pátria, a garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Ex-deputado federal e ex-ministro da Defesa, Raul Jungmann citou pareceres emitidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pela Advocacia-Geral da União (AGU) que concluem que as forças armadas não detêm poder de atuação autônoma, estando constitucionalmente subordinadas ao presidente da República.
“As forças armadas não detêm e, creio eu, nem querem deter esse papel que lhe é atribuído”, disse. “Se houvesse essa capacidade autônoma, o Executivo se transformaria em um superpoder e estaria rompido um dos pilares fundamentais da Constituição, que é a harmonia entre os poderes.”
O deputado Flávio Nogueira (PT-PI) reforçou que, ao longo da história, os episódios de intervenção militar sempre tiveram participação civil. “O intervencionismo, de fato, mexe muito com a gente, é chocante, é uma invasão da privacidade e da liberdade, mas isso tem sempre como coadjuvante a política. Nunca as Forças Armadas foram instadas a intervir sem a participação de civis”, disse.
Jungmann defendeu ainda que agentes de estado, incluindo militares, sejam desligados de suas corporações ao assumirem cargos políticos e lamentou o atraso e a pouca participação do Congresso na elaboração da Política de Defesa Nacional, que envolve também a Estratégia Nacional de Defesa e o Livro Branco de Defesa Nacional.
Mestre em Direito e ex-presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz lembrou que em meio ao período mais grave da pandemia de Covid-19 no Brasil foi chamado para um debate sobre “o poder moderador das forças armadas”. “Fomos obrigados, talvez no momento mais dramático do povo brasileiro, a elaborar um parecer, que, aliás, foi usado pelo ministro Luiz Fux nessa decisão citada pelo ex-ministro Jungman”, disse.
Santa Cruz entende que a Constituição de 88 submeteu as Forças Armadas ao poder civil e que não há outro entendimento possível. “Não há poder moderador das forças armadas, visto que não são um poder, mas estão submetidas ao presidente da República”, afirmou.
O ex-ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República Sérgio Etchegoyen, por outro lado, afirmou que nunca, em 50 anos de vida militar, havia sido convidado a debater sobre o suposto poder moderador das forças armadas. “O poder moderador, que passou a fazer parte de uma narrativa em um determinado momento, é o que eu chamo de não-assunto, porque nunca esteve presente na minha vida”, declarou.
Etchegoyen reiterou a tese de que o acionamento das forças armadas, como em ações de garantia da lei da ordem, depende de um comando político. “Imaginar que as operações de garantia da lei da ordem possam provocar algum protagonismo político do comandante militar que está lá é desconsiderar que ele está subordinado a autoridades civis”, disse.
O ex-ministro também demonstrou concordância com a ideia de que militares que assumam cargos políticos sejam automaticamente desligados das forças.
Na avaliação do deputado Filipe Barros (PL-PR), a tese das Forças Armadas como um poder moderador surgiu em meio a um contexto. “Essa discussão sobre o artigo 142 teve um contexto que é do agigantamento do Poder Judiciário e a completa inação do Congresso Nacional quando suas competências e atribuições constitucionais passaram a ser vilipendiadas”, disse. “Esse pano de fundo não pode ser ignorado. Temos que redesenhar as instituições brasileiras de modo que todos os poderes sejam harmônicos e independentes, como previsto na Constituição Federal”, completou.
O deputado Lindbergh Farias (PT-RJ), por outros motivos, também considera que é o momento para repensar o desenho constitucional em relação ao tema. “Houve um processo de tentativa de cooptação das Forças Armadas como um todo. Eu não considero um fato banal ter algo em torno de 6000 mil militares em cargos comissionados”, disse.
Para o deputado General Girão (PL-RN), se existe a falta de um poder moderador no País hoje, é porque esse poder está sendo exercido de maneira errada. Para Girão, o Congresso deve retomar suas responsabilidades para evitar que Judiciário assuma a última palavra.
Historiador e ex-deputado federal, Manoel Domingos Neto criticou o que chamou de “distúrbio de personalidade funcional” das Forças Armadas, que, segundo ele, assumiram diversas atribuições e acabaram se afastando de sua principal missão. “A missão das Forças Armadas precisa ser clara: é o combate a eventual agressão externa. Se há outra missão, já começa a continuidade do distúrbio de personalidade funcional, que acomete as forças armadas desde que nasceram em 1822”, destacou.
Etchegoyen , no entanto, rebateu a afirmação e disse que obras de engenharia militar em estradas, casas, represas, aeroportos e poços são exatamente as mesmas de uma engenharia militar em operações de campanha. “Não são outras coisas que não a mesma engenharia usada em combate”, disse.
Em junho de 2020, a Secretaria-Geral da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados emitiu parecer esclarecendo que o referido artigo não autoriza uma intervenção militar a fim de “restaurar a ordem”. Segundo o parecer, trata-se de “fraude ao texto constitucional” a interpretação de que as Forças Armadas teriam o poder de se sobrepor a “decisões de representantes eleitos pelo povo ou de quaisquer autoridades constitucionais a pretexto de ‘restaurar a ordem”.