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Bem Estar

Como transformar a solidão em solitude à medida que envelhecemos?

Foto: Divulgação
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Em sua coluna para a Vogue, o psiquiatra Filipe Batista fala sobre os riscos à saúde de se sentir isolado e como apreciar a própria companhia pode ajudar a envelhecer bem

O cenário: a Baía de Todos os Santos, enquadrada pelo contorno da sacada do prédio antigo. Um dos últimos restantes, em Salvador, a guardar um charme decadente — no melhor sentido, como defendem os franceses — de originalidade. Erguido nos anos 60, o edifício permanece tal qual era — ou muito parecido — na época de sua construção, havendo resistido às tentações retrofit de gosto duvidoso que violentam a, nem sempre compreendida, identidade singular desses velhinhos cheios de bossa.

Uma parede descascada, uma madeira puída, um piso de taco solto, e voilà, vão direto para a harmonização: boost de revestimentos espelhados, MDF para devolver sustentação e tônus, e, por fim, o levanta defunto, um protocolo diamante, que consiste na aplicação de preenchimentos à base de porcelanato.

A dona do apartamento, no simpático prédio-resistência, havia me convidado para tomar um café ao entardecer, durante minha visita mais recente à cidade. Uma sombra, cada vez mais escura, assentava sobre os móveis da sala. Ela acendeu as luminárias e os abajures — eram vários. Não me agrada a luz direta, ela disse; a mim tampouco, concordei. Preservemos o mistério da meia-luz.

Não nos encontrávamos havia anos, apenas por mensagens no celular. Está mais velha, assumi intimamente, com alguma culpa. Para atenuá-la, tomei como verdade que, assim como Simone de Beauvoir, ela igualmente defenderia o direito de ser chamada de velha, sem o peso costumeiro atribuído à palavra.

Assim como o prédio, a dona do apartamento também tinha seu charme, pensei, tentando criar para mim uma justificativa que suavizasse a aspereza da minha avaliação. Veja esta foto — ela disse apanhando um porta-retrato na estante — “Sou eu com 20 e poucos anos, linda, não acha?” Foi como se dissesse: “Eu me reconheço no corpo desta de 20 anos, me reconheço na mulher da foto”. Ou então: “Sinto saudade deste corpo que tive, da mulher que fui”. Ou um pouco dos dois; ou apenas: “Pare de me enxergar como uma velha”.

Como ela pôde mostrar a foto justamente enquanto eu media a profundidade de suas rugas, sua maneira mais vagarosa de caminhar? Deixei escapar minha face julgadora ou seria bruxaria de psiquiatra experiente — minha anfitriã também é psiquiatra, das boas (das velhas?)?

Ela estava sozinha em casa quando me recebeu. Mulher muito sábia, muito culta, muito velha — velha! — e sozinha em casa. A vista da sacada dava para a Baía de Todos os Santos, muitos livros na estante, o direito à meia-luz: tudo me parecia, plasticamente, a maneira mais digna de encarar a solidão e a velhice. Ser sozinho assim era melhor, envelhecer assim era melhor. Eu havia levado junto meu filho e minha esposa. Ele estava particularmente inquieto, vasculhava indiscretamente cada objeto, cada canto do apartamento cheio de tesouros escondidos, em vez de apreciar a conversa entre os adultos, o caráter adulto daquele instante.

Ele tinha cinco (!) anos. A velha amiga entenderia o seu comportamento errático, possivelmente enxergaria beleza naquela família atrapalhada. Me apeguei a esta ideia. Todas as famílias com crianças pequenas parecem sempre um pouco atrapalhadas. Vistas de fora, até transmitem beleza. Vistas de fora. A beleza de perseverar, com alguma graça e boa vontade, quando o caos se instala de repente.

Deixa ele mexer, está investigando, dizia minha amiga, compreensiva, reconhecendo em nós a tal beleza caótica, imaginei. Enquanto a mãe, visivelmente mais indignada com a falta de modos dele, repreendia-o com o olhar, eu me perdia na ideia de que minha velha amiga estava ficando mais velha e solitária; na companhia dos livros que ajudaram a fundar nossa amizade, mais de uma década atrás.

Ela está velha e sozinha, eu repetia para mim, ridiculamente. Sentir-se cronicamente desconectado dos outros pode afetar a estrutura e a função do cérebro, aumentar o risco de doenças neurodegenerativas, cardiovasculares, aumentar o risco de ansiedade, depressão, demência. Tudo isso disparava em minha mente. A suscetibilidade da pessoa mais velha à solidão, os achados científicos sobre solidão. Como evitá-los sendo psiquiatra? A meu contragosto, minha amiga irradiava um convencimento seguro sobre si, estampava uma velhice vigorosa e convicta, uma gravidade ao estar no mundo, inteira e só.

Aquilo foi me causando aflição. Meu filho tocando o terror, e eu perplexo perante a solidão da minha amiga. Eu insistia nisso, e ela tentava me tranquilizar. Ostentava aquela solidão bonita. Ela queria me lembrar que se sentia jovem, mais jovem que muitos jovens. Que as horas que passava sozinha não eram de solidão, mas na própria e agradável companhia. Que logo mais seu marido chegaria em casa. Que as histórias dos pacientes que atendia também eram suas. Que as fotos dos netos que moravam fora a alimentavam e davam a sua vida um sentido maior: o de uma saga geracional. Que seus alunos ainda a instigavam como antes. Que a Baía de Todos os Santos, vista da sacada, ainda a surpreendia, como na primeira vez que pisou os pés em Salvador.

Ela me olhava de uma maneira plácida, segura, como se quisesse reafirmar em mim o que nem eu reconhecia mais. Eu mesmo já me sentia mais velho, menos aceso que antes, mais sozinho na companhia de outras pessoas. Um miserável velho solitário. Mas ela insistia, apenas com o olhar. Queria que eu me convencesse de estar enganado.

Anoiteceu. Seu marido chegou, eles nos levaram até a porta. Enquanto aguardávamos o elevador, elogiei a beleza do prédio antigo: traços arquitetônicos originais restam preservados, apesar das paredes descascadas. Os moradores novos querem mudar tudo, fazer uma reforma das grandes, ela disse contrariada. Nos despedimos com abraços afetuosos e a promessa de um novo encontro. Deixei o prédio antigo olhando para trás. Ainda parecíamos uma família atrapalhada. Minha amiga, vista de fora, parecia mais jovem. Ela era linda e tinha 20 e poucos anos.

Fonte Vogue

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