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Meio Ambiente

Ondas de calor do futuro podem mostrar que somos mais vulneráveis do que pensamos

Foto: Divulgação
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Dependência de redes elétricas e prédios muito quentes podem piorar qualidade de vida nos próximos anos

Em uma noite recente de quinta-feira, uma tempestade de vento anormal chamada derecho (em espanhol, “direto”) atingiu Houston, cidade com mais de dois milhões de habitantes que também é o epicentro do setor de combustíveis fósseis nos Estados Unidos.

Em questão de minutos, ventos de até 160 km por hora arrancaram janelas de prédios comerciais e derrubaram árvores, postes elétricos e torres de transmissão. Cerca de um milhão de residências ficaram sem energia. Isso significa que não só não havia luz, mas também não havia ar-condicionado. Os danos causados pela tempestade foram tão extensos que, cinco dias depois, mais de cem mil residências e empresas permaneciam isoladas no calor e na escuridão.

Felizmente, no dia em que o derecho chegou, a temperatura em Houston, cidade famosa por seus verões úmidos, estava na casa dos 26ºC. Quente, com certeza, mas, para a maioria das pessoas saudáveis, sem risco de vida. Das pelo menos oito mortes registradas como resultado da tempestade, nenhuma foi causada por exposição ao calor.

Mas se essa tempestade tivesse chegado vários dias depois, talvez no fim de semana do Memorial Day, quando a temperatura em Houston atingiu 35,5ºC, com um índice de calor de até 46ºC, a história poderia ter sido bem diferente. Mikhail Chester, diretor do Centro Metis de Infraestrutura e Engenharia Sustentável da Universidade Estadual do Arizona, me explicou certa vez: “É o furacão Katrina do calor extremo”, ecoando a memória do catastrófico furacão de 2005 que atingiu a Louisiana, devastou Nova Orleans e matou mais de 1.300 pessoas.

Na ocasião do Katrina, as mortes foram causadas principalmente por afogamento, ferimentos ou problemas cardíacos. Mas o dr. Chester estava usando o Katrina como uma metáfora do que pode acontecer com uma cidade despreparada para uma catástrofe climática extrema. Em Nova Orleans, o sistema de diques foi sobrecarregado por chuvas torrenciais; no fim, 80% da cidade ficaram debaixo d’água.

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E se, em vez disso, a eletricidade faltar por vários dias durante uma onda de calor intenso no verão, em uma cidade que depende de ar-condicionado nesses meses?

No cenário do dr. Chester, uma crise composta de calor extremo e falta de energia em uma grande cidade como Houston poderia levar a uma série de falhas em cascata, expondo vulnerabilidades na infraestrutura da região que são difíceis de prever e que poderiam resultar em milhares ou mesmo em dezenas de milhares de mortes por exposição ao calor em questão de dias. O risco para as pessoas nas cidades seria maior, porque todo o concreto e o asfalto amplificam o calor, elevando as temperaturas de 15 a 20 graus no meio da tarde acima das áreas arborizadas ao redor.

derecho que atingiu Houston foi um alerta sobre a rapidez com que os riscos estão se multiplicando em nosso mundo em rápido aquecimento. Como que para provar esse ponto, cerca de dez dias depois do apagão de Houston, outra tempestade de vento derrubou a energia de centenas de milhares de residências e empresas em Dallas e nos arredores.

População vulnerável

Uma das ilusões mais perigosas da crise climática é que a tecnologia da vida moderna nos torna invencíveis. Os seres humanos são inteligentes, temos ferramentas. Sim, vai custar dinheiro, mas podemos nos adaptar ao que vier pela frente. Quanto aos recifes de coral que se branquearam nos oceanos quentes e aos bugios que caíram mortos das árvores durante uma recente onda de calor no México, bom, isso é triste, mas a vida continua.

Obviamente, esse é um ponto de vista extremamente privilegiado. Por um lado, mais de 750 milhões de pessoas no planeta não têm acesso à eletricidade, muito menos ao ar-condicionado. (Na Índia, Nova Déli registrou temperaturas de até 48ºC na semana passada, o que levou a um aumento nos casos de insolação, ao temor de apagões e à possibilidade de racionamento de água.) Mas também é um ponto de vista ingênuo, mesmo porque nossa bolha de invencibilidade é muito mais frágil do que imaginamos. Portanto, o que podemos esperar de um Katrina de calor?

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No ano passado, pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Geórgia, da Universidade Estadual do Arizona e da Universidade do Michigan publicaram um estudo analisando as consequências de um grande apagão durante uma onda de calor extremo em três cidades: Phoenix, Detroit e Atlanta. No estudo, a causa do blecaute não foi especificada.

“Na verdade, não importa se o apagão é resultado de um ataque cibernético ou de um furacão. Para os fins de nossa pesquisa, o efeito é o mesmo”, me disse Brian Stone, diretor do Laboratório de Clima Urbano do Instituto de Tecnologia da Geórgia e principal autor do estudo. Seja qual for a causa, o estudo observou que o número de grandes apagões nos EUA mais do que dobrou entre 2015-16 e 2020-21.

O dr. Stone e seus colegas se concentraram nessas três cidades americanas porque elas têm dados demográficos, clima e dependência de ar-condicionado diferentes. Em Detroit, 53% dos edifícios têm ar-condicionado central; em Atlanta, 94%; em Phoenix, 99%. Os pesquisadores modelaram as consequências para a saúde dos residentes em um apagão de dois dias em toda a cidade durante uma onda de calor, com o restabelecimento gradual da eletricidade nos três dias seguintes.

Os resultados foram chocantes: em Phoenix, cerca de 800 mil pessoas (aproximadamente metade da população) precisariam de tratamento médico de emergência para insolação e outras doenças. A enxurrada de pessoas buscando atendimento sobrecarregaria os hospitais da cidade. Mais de 13 mil pessoas morreriam.

Diante do mesmo cenário em Atlanta, os pesquisadores descobriram que haveria 12.540 visitas a salas de emergência e seis pessoas morreriam. Em Detroit, que tem uma porcentagem maior de residentes mais idosos e uma taxa de pobreza mais alta do que as outras cidades, 221 pessoas morreriam.

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Talvez não devêssemos nos surpreender com esses números. Os pesquisadores estimam que houve 61.672 mortes relacionadas ao calor na Europa no verão de 2022, a estação mais quente já registrada no continente na época. Em junho de 2021, uma onda de calor resultou em quase 900 mortes excessivas no noroeste do Pacífico. E, em 2010, cerca de 56 mil russos morreram durante uma onda de calor sem precedentes no verão.

Quanto mais quente fica, mais difícil é para o corpo lidar com a situação, aumentando o risco de insolação e outras doenças causadas pelo calor, e as temperaturas estão subindo em todo o planeta. O ano passado foi o mais quente já registrado, e os dez anos mais quentes ocorreram todos na última década.

No estudo que simulou uma onda de calor nessas três cidades, os pesquisadores concluíram que o número muito maior de mortes em Phoenix foi explicado por dois fatores. Primeiro, as temperaturas durante uma onda de calor em Phoenix (32ºC a 45ºC) foram muito mais altas do que as temperaturas em Atlanta (25ºC a 36ºC) ou Detroit (22ºC a 35ºC). E, segundo, a maior disponibilidade de sistemas de ar-condicionado em Phoenix significa que os riscos de uma queda de energia durante uma onda de calor são muito maiores.

Medidas de emergência

Muitas medidas podem ser tomadas para reduzir esses riscos. A construção de cidades com menos concreto e asfalto e mais parques, árvores e acesso a rios e lagos ajudaria, bem como um sistema de alerta de ondas de calor mais sofisticado e padronizado nacionalmente. As grandes cidades também precisam identificar os moradores mais vulneráveis e desenvolver planos de resposta de emergência direcionados, além de planos de gerenciamento de calor de longo prazo.

Tornar a própria rede mais resiliente é igualmente importante. Melhores barreiras de proteção digitais nos centros de operação da rede impedem as invasões de hackers. O aterramento das linhas de transmissão as protege de tempestades. Baterias para armazenar eletricidade para uso em emergências estão cada vez mais baratas.

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Mas, quanto mais quente fica, mais vulnerável a rede se torna, mesmo quando a demanda por eletricidade aumenta devido ao alto consumo de ar-condicionado. Linhas de transmissão caem, transformadores explodem e usinas elétricas falham. Um estudo de 2016 constatou que a possibilidade de falhas em cascata na rede elétrica do Arizona aumentaria 30 vezes em resposta a um aumento de 1,8 grau nas temperaturas do verão.

“A maioria dos problemas com a rede em dias quentes vem de falhas nas usinas de energia ou na rede causadas pelo próprio calor ou pela dificuldade de atender à alta demanda por refrigeração”, me disse Doug Lewin, especialista em rede e autor do boletim informativo “Texas Energy and Power”, acrescentando que a melhor maneira de corrigir isso é incentivar as pessoas a reduzir a demanda de energia em casa com sistemas de aquecimento e refrigeração de alta eficiência, melhor isolamento e termostatos inteligentes, e a gerar a própria energia com painéis solares e o uso de baterias para armazenamento.

A ameaça iminente de um “Katrina de calor” é um lembrete de como o progresso tecnológico cria novos desafios, mesmo quando soluciona os antigos. Recentemente, em um dia muito quente durante uma viagem a Jaipur, na Índia, visitei um edifício do século XVIII que tinha uma fonte interna, paredes espessas e um sistema de ventilação projetado de modo a forçar o vento a passar por todos os cômodos. O prédio não tinha ar-condicionado, mas era tão fresco e confortável quanto uma torre de escritórios recém-erguida em Houston.

O ar-condicionado pode, de fato, ser uma necessidade moderna sem a qual muitos de nós, que vivemos em regiões quentes do mundo, não conseguimos sobreviver. Mas também é uma tecnologia que favorece o esquecimento. Antigamente, as pessoas compreendiam os perigos do calor extremo e criavam maneiras de conviver com ele. E agora, à medida que as temperaturas aumentam em decorrência de nosso consumo desenfreado de combustíveis fósseis, dezenas de milhares de vidas podem depender de nos lembrarmos de como isso foi feito. Ou de encontrar maneiras melhores de fazê-lo.

Fonte R7

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